A falta de regulamentação clara sobre a transição de governo gera colapso administrativo, prejudicando serviços essenciais e a eficiência da gestão pública
Por Lauro Rabha*
Após o período eleitoral, a atenção se volta para as expectativas em relação aos novos governos que assumem os municípios.
Um tema de grande relevância, mas frequentemente ignorado, é a transição de governo, que deve sempre ser regida pelos princípios da continuidade da administração, da legalidade e da publicidade.
No entanto, nem sempre isso ocorre.
Para iniciar a discussão, é importante destacar que, atualmente, não existe uma legislação sancionatória específica que regule a transição de governo.
Essa lacuna, no caso concreto, dá lugar a inúmeros absurdos praticados por gestores inconsequentes.
Casos alarmantes, como o ocorrido recentemente em um município da Baixada Fluminense após as eleições de 2024, ilustram bem essa falha.
Um gestor derrotado nas urnas deixou o cargo e, de forma irresponsável, subtraiu da máquina pública itens essenciais, como computadores, discos rígidos, equipamentos importantes e até itens de menor valor, como pilhas, torneiras de banheiros e chuveiros.
Em outro município, na região serrana, a gestão anterior deixou de emitir inclusive os carnês de IPTU. Será que teriam feito se fosse um governo de continuidade?!
Os objetivos, nesses casos, era dificultar a gestão posterior, prejudicando, ao final, os serviços públicos destinados à população.
Aqui no Rio de Janeiro vários prefeitos eleitos assumiram municípios endividados, com atrasos no pagamento de servidores, falta de coleta de resíduos e a escassez de serviços públicos essenciais devido à falta de lealdade de quem deixa o cargo.
Por essa razão, uma disposição mais clara e impositiva para o instrumento de transição de governo precisa ser debatida com urgência.
Vivemos em um sistema democrático com um processo eleitoral que favorece a reeleição ou a sucessão.
Quando essa recondução ou sucessão não ocorre, entra em cena o processo de transição, que visa garantir que o novo governo não seja surpreendido e tenha as informações necessárias para a continuidade dos serviços públicos.
Trata-se de uma atitude republicana que, entretanto, não é a regra geral, especialmente pela ausência de normas que regulem esse período entre a derrota do atual gestor e a posse do vencedor de forma impositiva, com consequências legais.
Portanto, seja pela continuidade ou pela eficiência da gestão da coisa pública, o processo de transição precisa ser melhor estruturado e positivado pelo legislador.
O que vemos hoje é um processo truncado, marcado pela falta de transparência, espírito democrático e, muitas vezes, pelo desrespeito aos princípios constitucionais.
A verdade é que não há uma regulamentação clara sobre a transição.
As únicas diretrizes existentes são a Lei 10.609/02, que trata do processo de transição presidencial (mas sem possíveis sanções por descumprimento), a súmula 240 do TCU e a nota técnica 4/20 do TCE/RJ, que, embora bem elaborada, também carece de imposição de sanções.
Essa falta de clareza sobre quais medidas e procedimentos o candidato eleito deve – e pode – tomar, além da ausência de penalidades próprias, gera um verdadeiro colapso administrativo e insegurança jurídica nos municípios.
No geral, o que se observa quando há derrota da máquina local são processos licitatórios irregulares, contratações indevidas, cancelamentos de empenhos e outras ilegalidades, muitas vezes graves.
Outro ponto fundamental é a necessidade de mecanismos de controle nos procedimentos licitatórios durante a transição.
Uma contratação indevida ou uma omissão nas rotinas administrativas pode comprometer a saúde financeira do município por anos, afetando os serviços essenciais à população.
Comumente, quando há alternância de poder, entre as eleições de outubro e a posse em janeiro, observa-se o mau uso dos recursos públicos ou desdém com procedimentos administrativos.
A regra, nesses casos, é que a máquina pública seja negligenciada, os serviços mal prestados e os equipamentos sucateados.
Muitas vezes, os servidores não recebem seus salários, um reflexo da síndrome do “mau perdedor”, que toma conta do candidato derrotado.
Portanto, é urgente a implementação de mecanismos mais eficazes de transparência durante o processo de transição, como o acompanhamento ativo e formalizado pelos Tribunais de Contas.
A criação de um conselho, instituído por lei, composto por membros do TCE e Ministério Público, com a obrigação de garantir a realização do processo de maneira adequada, também seria uma solução importante.
Além disso, é necessário refletir sobre a imposição de sanções para os responsáveis por esses abusos.
Penalidades como multas, devoluções e investigações podem ser importantes, mas muitas vezes não conseguem constranger os maus políticos.
Infelizmente, o que se observa, é que o único temor é quando se fala da possível sanção de inelegibilidade desse tipo de gestor, que se afasta das boas práticas e confunde seus interesses políticos com a máquina pública.
As ações de improbidade, por serem demoradas, não têm o efeito imediato necessário para coibir esses comportamentos, e quem sofre é a população.
Antecipar a posse poderia ser uma medida, mas seria ainda mais disruptiva do ponto de vista democrático, pois demandaria uma alteração constitucional.
Temos, ainda, uma Lei de Responsabilidade Fiscal desatualizada, que não corresponde à realidade atual e não trata da matéria ora discutida.
O jogo político é válido, mas não se pode permitir que o servidor, as concessionárias, os prestadores de serviços e, mais importante ainda, o cidadão, paguem a conta de políticos que não têm compromisso com o espírito público.
Por isso, é urgente que se regule a transição e se estabeleçam normas e sanções mais duras para os gestores que confundem a máquina pública – que serve, no final do dia, para atender o cidadão – com os interesses políticos privados.
- *Lauro Rabha é especialista em Direito Público e membro da comissão de direito constitucional e eleitoral da OAB/RJ