A Lei de Ficha Limpa e o Ressurgimento da Análise Subjetiva da Probidade, Moralidade e Vida Pregressa para o Exercício do Mandato

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Por Tiago Santos*

Nas últimas eleições municipais, assistimos a uma grande viragem jurisprudencial promovida por algumas Cortes Regionais Eleitorais do país, no que tange a uma reinterpretação principiológica do art. 14, § 9º da Constituição Federal, que prevê que:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

  • 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Vale recordar que antes do advento da lei complementar nº 64/90 (com as alterações trazidas pela LC nº 135/2010), conhecida, também, como lei de ficha limpa, o grande debate travado pela comunidade jurídica eleitoral era no sentido da subjetividade imposta pela referida norma constitucional em relação aos critérios de probidade administrativa, moralidade e análise da vida pregressa para o exercício do mandato.

Com a aprovação da lei de ficha limpa, restou superada a análise subjetiva destes critérios na aferição do registro de candidatura, uma vez que, o referido diploma legal, veio justamente, através do seu artigo 1º, inciso I e alíneas, preencher a lacuna que existia, antes de sua vigência, uma vez que, o §9º do art. 14 da CF, exigia, expressamente a propositura de uma lei complementar para dirimir quais seriam os casos de restrição a capacidade passiva eleitoral, ou seja, o direito de votar e ser votado.

No entanto, diversos candidatos ao pleito municipal deste ano tiveram os seus registros de candidaturas indeferidos por decisões colegiadas de Cortes Regionais Eleitorais, mesmo sob a hipótese de não responderem a processos constantes no rol de inelegibilidades, previstos na lei complementar nº 64/90. A base para a negativa de registros foi alicerçada em uma tese já superada e de cunho principiológico, que não encontra amparo na jurisprudência dominante do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo. Ressalta-se que muitos destes candidatos sequer possuíam condenações proferidas por órgãos colegiados de Tribunais, conforme exigência da referida lei.

Quanto a esta viragem jurisprudencial, nos parece que houve, por parte de alguns Tribunais Regionais Eleitorais, a adoção de uma linha de entendimento que se traduz, claramente, na revogação tácita da súmula 13 do TSE que dispõe sobre a não autoaplicabilidade do § 9º do art. 14 da Constituição, bem como, um “fechar de olhos” para o rol taxativo das causas de inelegibilidade, previsto na Lei de Ficha Limpa.

Com o devido respeito que temos com a Justiça Eleitoral, mas, através de tal entendimento, cria-se um censor de subjetividade de potencial ilimitado e não previsto em lei a ser utilizado na aferição das condições de elegibilidade e inelegibilidade, sem contar com a notória relativização do princípio da presunção de inocência.

Nesse contexto, defendemos algo que nos parece muito claro, ou seja, com o advento da lei de ficha limpa, não caberia, em qualquer hipótese, uma interpretação principiológica do art.14,§9º por parte das Cortes Regionais Eleitorais, pois careceriam, até mesmo, de competência para fazê-lo, uma vez que o próprio Supremo Tribunal Federal o qual detém competência para interpretar a Constituição Federal, já enfrentou o tema e decidiu que o referido dispositivo não é autoaplicável, conforme remansosos precedentes.

Por fim, ressalvados entendimentos em contrário, acreditamos que não se moraliza a política relativizando outros direitos tão caros para a sociedade, ainda mais em se tratando daqueles inerentes ao exercício da cidadania, que devem ser interpretados restritivamente. A regra do processo eleitoral democrático é a elegibilidade, sendo a inelegibilidade a excepcionalidade, o remédio não pode ser mais amargo que a própria doença.

 

*Tiago Santos é advogado especialista em direito eleitoral, Desembargador Eleitoral biênio 2020/2022, Mestre e Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.

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